Um (meu) caminho para a poesia contemporânea

Por Mariane Rocha

Olá, leitoras e leitores! 

Foi através da poesia da Angélica Freitas, poeta pelotense, o meu primeiro contato com a poesia brasileira contemporânea. Em 2013, conheci primeiro a pessoa, depois os versos, quando ela palestrou na Semana Acadêmica de Letras da Unipampa, evento que eu ajudei a organizar. (A escolha por ela, no entanto, não foi minha: foi de uns colegas vanguardistas que escolheram nomes importantes que nos acompanham até hoje: além da Angélica Freitas, nessa mesma ocasião estiveram também Jeferson Tenório e Moema Vilela). Voltando à Angélica: ela leu alguns de seus poemas e eu fui impactada na hora, pela novidade e pela perspicácia com a qual ela colocava suas críticas à sociedade a partir de temas tão caros pra mim, como a violência de gênero. 

mulher de vermelho (Um útero é do tamanho de um punho, 2012) 

o que será que ela quer

essa mulher de vermelho

alguma coisa ela quer 

pra ter posto esse vestido

não pode ser apenas

uma escolha casual 

podia ser um amarelo

verde ou talvez azul

mas ela escolheu vermelho

ela sabe o que ela quer

e ela escolheu vestido

e ela é uma mulher

então com base nesses fatos

eu já posso afirmar 

que conheço o seu desejo

caro watson, elementar:

o que ela quer sou eu euzinho

sou euzinho o que ela quer

o que mais podia ser 

Foram a ironia com que a poeta questionava a cultura patriarcal e a assertividade com que direcionava essas questões que capturaram a atenção da Mariane de 18 anos. Com o tempo, porém, várias vezes este mesmo livrinho — Um útero é do tamanho de um punho (2012) retornou à minha vida. Conversei sobre ele em um clube do livro, utilizei vários de seus poemas em sala de aula, discuti a obra completa da Angélica em um grupo de estudos no mestrado. 

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Foto: Mariane Rocha

E, a cada releitura, uma nova faceta dessa lírica foi se desdobrando para mim: a complexa camada intertextual de autoras, poetas, artistas, colocados sem distinção, do clássico ao contemporâneo, do cânone à cultura popular; a hibridização da poesia com a carta, o causo, o relato, a pesquisa online; a variedade de recursos estilísticos, especialmente a riqueza das figuras sonoras. Todos esses procedimentos associados a um olhar sagaz sobre questões atuais me mobilizam e fazem com que, de tempos em tempos, eu retorne a esses poemas. 

 

metonímia (Um útero é do tamanho de um punho, 2012)

alguém quer saber o que é metonímia

abre uma página da wikipédia

depara com um trecho de borges

em que a proa representa o navio

a parte pelo todo se chama sinédoque

a parte pelo todo em minha vida

este pedaço de tapeçaria

é representativo? não é representativo?

eu não queria saber o que era

metonímia, entrei na página errada

eu queria saber como se chegava

perguntei a um guarda

não queria fazer uma leitura 

equivocada

mas todas as leituras de poesia

são equivocadas

queria escrever um poema

bem contemporâneo 

sem ter que trocar fluídos

com o contemporâneo

como roland barthes na cama

só os clássicos

Recentemente, Angélica lançou mais um livro: Canções de atormentar (2020), dessa vez pela Companhia das Letras. Eu já tinha ouvido um poema desse livro em performance da poeta com a cantora Juliana Perdigão, em 2018, na PUC-RS. Ainda lembro dos ritmos e dos sons do poema recitado e, desde lá, o mistério desse imaginário marítimo repleto de sereias e navegantes me inquietava. O texto da performance, que tem o mesmo título do livro, está completo na última seção da publicação. Além do poema “Canções de atormentar”, o livro homônimo contém mais 46 poemas e mantém as características centrais de Freitas, a dialética entre ferocidade e humor, que só o seu olhar crítico e irônico sobre a vida é capaz de apresentar. Há, aqui, entretanto, um novo ângulo a respeito dos acontecimentos, certo olhar memorialístico que relembra a poeta da juventude, da infância, da família e de tempos remotos (desses poemas, o meu preferido é o “ana c”, no qual o eu lírico reflete sobre como a leitura da poeta Ana Cristina Cesar mudou sua vida). Além disso, há uma tensão entre o local e o global que vai, em um nível, reverberar as experiências pessoais da poeta, em outro, propor a discussão de questões urgentes, como no poema “porto alegre, 2016”.

porto alegre, 2016 (Canções de atormentar, 2020)

quando você viu na TV

aquelas pessoas em fila na chuva

à noite numa estrada

na fronteira de um país que não as deseja

e quando você viu as bombas

caírem sobre cidades distantes

com aquelas casas e ruas

tão sujas e tão diferentes

e quando você viu a polícia 

na praça do país estrangeiro

partiu para cima dos manifestantes

com bombas de gás lacrimogêneo

não pensou duas vezes

nem trocou o canal 

e foi pegar comida

na geladeira

não reparou o que vinha

que era só uma questão de tempo

não interpretou como sinal a notícia

não precisou estocar mantimentos 

agora a colher cai da boca

e o barulho de bomba é ali fora

e a polícia vai pra cima dos teus afetos

munida de espadas, sobre cavalos

Espero que todos vocês conheçam a poesia da Angélica e se enveredem por esses caminhos da nossa poesia contemporânea, tão repletos de possibilidades. Para saber mais sobre a poeta, recomendo esta série de vídeos feita pelo canal Estratégia narrativa. Desejo uma boa leitura a todos vocês! Conversamos no mês que vem.

Mariane Rocha é leitora desde que se conhece por gente. Graduada e mestra em Letras, atualmente é professora de literatura e língua portuguesa no IFSul, em Bagé. Estuda poesia contemporânea e suas articulações com fotografia e cinema no doutorado em Letras da UFPel.

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