Escrevo. E só: quando a literatura vira imagem

A imagem é uma forma de escrita. A escrita tem a forma de uma imagem. O documentário “Escrevo. E só”, da Giuliana Bruni, busca o encontro dessas duas linguagens numa escrita imagética, ao mostrar a presença da criação literária no audiovisual. Da relação entre literatura e cinema surge, assim, uma poética visual, uma expressão singela das formas pelas quais a literatura concebe-se visualmente.

A intenção aparente da Giuliana era fazer o inverso: retratar no audiovisual a relação de seis escritores bageenses com a literatura local. Mas o cinema pertence ao domínio do imaginário e do simbólico, por isso as coisas são bem mais complexas. O que parece nem sempre é. Aquilo que se mostra é na verdade aquilo que está oculto. Ou seja, o filme implica algo mais do que o seu significado evidente. Giuliana chega a sugerir esse significado oculto especialmente nas cenas iniciais e finais do curta. Ela usa a literatura para ir ao encontro de si mesma. Nesse sentido, o curta é mais um testemunho do olhar da diretora, da sua visão de mundo, do que propriamente do olhar dos escritores bageenses sobre a literatura local.

O curta intercala imagens oníricas e poéticas com a fala dos entrevistados, dando mais credibilidade aos seus processos de criação. As imagens surgem em momentos recorrentes provocando um corte na narrativa e na própria percepção do espectador. Uma sensação de estranhamento nos toma à medida que a subjetividade das imagens poéticas entram em cena, não para ilustrar os poemas escolhidos pelos personagens, mas para estimular a entrega afetiva do espectador à poesia. Uma forma de expressar em sentimento visual o arrebatamento que o poema escrito pode nos causar. O close nos olhos, a lata que rola sob o chão em preto e branco, as árvores que balançam sob o céu desbotado, o relógio antigo que abriga as horas, a chaleira que esquenta no fogão à lenha, a esperança dos cemitérios… Esse mosaico de poemas visuais, roteirizado por Giuliana e operado pela câmera de Jeferson Vainer, nos convida a imaginar e a sentir a poeticidade do mundo ao redor. É um convite à introspecção.

Os elementos estéticos que compõem a cena dialogam com aquilo que a própria diretora acredita. Aliás, a seleção e o recorte da fala dos personagens dizem muito sobre o que a Giuliana pensa sobre o ato da escrita, pois ela mesma é uma escritora em processo. Como jornalista, acredita na força da subjetividade e da imaginação autoral e, por isso, deixa transparecer um pouco de si quando busca uma forma de olhar o mundo da literatura a partir da mediação das lentes. Por isso também a sua opção pelo Jornalismo Literário, que tem muito a ver com o próprio documentário em questão. Diferentemente da tradição positivista que ainda ronda as redações de jornal, cuja característica principal é a neutralidade do repórter e sua não-intervenção no assunto abordado (o jornalista como pessoa escondida), há, no trabalho da Giuliana, uma contaminação saudável e criativa entre o sujeito que narra e a história narrada, um “entranhamento” entre literatura e cinema, entre imagem e poesia. Ela vai buscar no outro aquilo que ela gosta de dizer, mas sem se esconder. O título já indica, pois está escrito em primeira pessoa. Giuliana narra em primeira pessoa, mesmo que por meio de outros autores. E isso fica claro na passagem final do curta: “enquanto busco respostas para meus anseios, encontro pessoas que são o mesmo eu. Elas tentam tatear, no claro e no escuro, palavras certas para designar sentimentos que são comuns a todos. Viver é escrever. Escrever é viver.”

Giuliana escreveu poesia com imagens.

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