Entre restos e resquícios

Por Mariane Rocha

 

Olá, leitoras e leitores,

 

Eu estava aqui pensando que tenho muitos colegas da área de Letras que afirmam categoricamente que o curso de Letras os fez menos leitores. Seja na graduação ou na pós-graduação, em algum momento, entre tantas autoras e autores estudados, entre tantas teorias e métodos, os leitores que foram se perderam. Tenho sorte: não somente não fui acometida por essa desilusão literária, como posso dizer com alegria que muitas das melhores obras que já li, eu conheci dentro da sala de aula, nesses mais de 10 anos que estou em formação.

A poeta que eu escolhi para conversar hoje é um desses casos. A conheci bem recentemente, em uma disciplina de poesia brasileira contemporânea, ministrada pelo meu orientador – responsável, aliás, por boa parte do meu repertório poético. Leila Danziger estava ali, entre outros nomes já familiares para mim, e, na primeira passada de olhos por seus poemas, certo jeito de contar o mundo a partir daquilo que é íntimo me capturou. Há, em sua poética, uma sutileza ao misturar acontecimentos históricos com subjetividades, uma experimentalidade ao lidar com outros meios – as artes plásticas, o cinema, a fotografia – e ao levar o poema para outros lugares – o museu, a galeria, as páginas amareladas de um jornal qualquer, os terrenos já subvertidos pela landart – em um movimento que, ao invés de afastar os leitores, os convida a submergir em seus versos.

FATO BRUTO (Três ensaios de fala, 2012)

 

 A partir de uma foto do jornal O Globo,

 de 6 de agosto de 2005.

 

                  Encontrei a baleia encalhada

entre um anúncio de eletrodomésticos

e algumas notícias gastas.

Palavras de puro mato

envolviam um sua carcaça triste e obscena.

A baleia pedia crônicas de espanto

mas nem as ondas revoltam-se

não há assombro por sua carne inerte.

Na faixa de areia

a moça das costas ao fato bruto

que é uma baleia encalhada

e continua tranquila

seu bronzeado.

 

                         (mas o sol não esquece

                         naquele mesmo dia

                        há sessenta anos

                        – sobre o Pacífico

                        o calor de dez mil rivais.)

 

minha dúvida é onde fazer um túmulo digno para baleia

que conhece as águas e as cinzas.

Enterro seu corpo de imagem

por entre as páginas que nos contam o dilúvio.

Assinalo no calendário

agosto é mês de baleias mortas.

 

Além do livro mencionado acima, Três ensaios de fala (2012), Leila publicou seus poemas também em Ano novo (2016), C’est loin Bagdad [fotogramas] (2018) e no recém-lançado Cinelândia (2021). A poeta carioca é também artista visual e podemos encontrar as reproduções de seus trabalhos, bem como reflexões críticas sobre eles em Edifício Líbano (2012), Todos os nomes da melancolia (2012), Diários públicos (2013) e Navio de emigrantes (2018).

Imagem: OS QUE VIVEM À BEIRA DA DISSOLUÇÃO [2012] impressão jato de tinta sobre papel de algodão, 70 x 50 cm. Edição: 5. Disponível em: https://www.leiladanziger.net/. Acesso: 16/03/2021. 

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Os que vivem à beira da dissolução foi utilizada como capa do livro Três ensaios de fala

Outro eixo importante de seu trabalho – não dissociado dos aspectos já mencionados, pelo contrário, desenvolvido a partir deles – é a abordagem memorialística da vida pessoal e familiar. Na primeira seção de Ano novo, nomeada “Economia”, por exemplo, encontramos o que talvez seja um dos momentos de maior sensibilidade da poesia brasileira deste século: um eu lírico cuja função é organizar o apartamento do pai recém-falecido. Entre documentos, placas de raios-x, notas fiscais e estantes agora vazias, a filha ressignifica a dor e o luto:

[Tenho certeza] (Ano novo, 2016)

Tenho certeza –

ele gostaria da gata

que percorre lá no alto

suas estantes agora vazias

ela faz o luto

do espaço

aos saltos

alcança as prateleiras mais longínquas

onde os livros eram apenas

monumentos.

E da soleira da porta,

ao piscar os olhos, vejo

a imagem indestrutível do que era

projetar-se sobre o espaço vazio

a gata não sabe

mas pisa matéria que ainda resfria

seus tufos de pelo branco

substituem o pó (antigo húmus

do quarto).

O reconhecimento da importância dos registros vai perpassar também as novas relações estabelecidas pelo eu lírico. O filho é fotografado e filmado, mesmo quando não há câmeras para fazer este registro: “E como não há foto alguma desse encontro/ reúno-os/ aqui / meu filho, aos quatro anos, e seu pai”. Já as relações com outros artistas e poetas estão postas quando, não a partir da intertextualidade nos próprios poemas, nas dedicatórias que vêm logo após os títulos dos poemas. Ao fim de C’est loing Bagdad, a poeta elenca: “com citações de Paulo Henriques Britto, Sophia de Mello Andresen, Gonzalo Rojas”. 

O poema como lugar de registro tanto do que foi como do que poderia ter sido, os meios de registro da memória como incertos – que são –, as referências intertextuais, o incessante diálogo com as artes (inclusive, com seu próprio fazer artístico) são alguns dos tantos elementos que me comoveram na lírica de Danziger. Uma poesia de diferentes camadas, nas quais somos convidados a dialogar, a investigar, a pesquisar, a nos tornar aqueles leitores que eu acredito que deveríamos sempre ser: que apreciam ativamente a leitura que fazem.

Convido todas e todos vocês a conhecerem mais sobre a Leila. Boa parte de sua produção está disponível para download gratuito em seu site. No instagram, ela compartilha resquícios de seu cotidiano e detalhes sobre seus processos artísticos em @leiladanziger. 

Boas leituras e até mês que vem!

*

Mariane Rocha é leitora desde que se conhece por gente. Graduada e mestra em Letras, atualmente é professora de literatura e língua portuguesa no IFSul, em Bagé. 

Estuda poesia contemporânea e suas articulações com fotografia e cinema no doutorado em Letras da UFPel.

 

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